segunda-feira, 14 de junho de 2010

Prefácio in "Estudos de História da Pintura e da Gravura - Porto Junho 2010

Carlos da Silva Lopes (19041978)

Perfil de um ‘homem bom’, historiador de arte e museólogo, culto e sempre generoso.

Vitor Serrão (Professor Catedrático de Letras da Universidade de Lisboa)

Em Abril de 1973, sendo ainda um jovem estudante universitário a iniciar-se nas lides da investigação artística, tive o privilégio de conhecer Carlos da Silva Lopes, em Braga, aquando do grande Congresso Internacional sobre Andre Soares e a Arte em Portugal no Seculo XVIII, organizado pelos saudosos Prof. Flávio Gonçalves e Dr. Robert Chester Smith (este na qualidade de presidente honorário) e que reuniu uma centena de grandes especialistas de vários países.

Tratou-se, sob todos os pontos de vista, de um evento científico de dimensão excepcional e dotado de uma estrutura organizativa que o país não conhecia, com franco debate teórico-metodológico e apresentação de resultados de pesquisa com grande alcance. Carlos da Silva Lopes apresentou nesse evento uma interessante comunicação sobre mobiliário português nos reinados de D. João V e D. José I, na sua maioria pertencente às colecções do Museu Nacional de Soares dos Reis, e que saiu publicada no 1º tomo das respectivas Actas (Bracara Augusta, vol. XXVII, nº 63, 1973, pp. 232-237).

Recordo bem como o conheci nesse congresso de Braga, depois de me ter sido apresentado pelos Profs. Flávio Gonçalves e Jorge Henrique Pais da Silva durante uma das visitas de estudo realizadas, e de atestar desde logo a sua larga sensibilidade, o seu fino trato, a sua disponibilidade para saber ouvir e para incentivar os mais novos na senda da História da Arte e da Museologia, terrenos que dominava com escrúpulo e solidez. Sabendo do meu interesse, que era o de aprendiz adolescente, pelo estudo da pintura maneirista nacional, elogiou o saber nesse domínio tão mal estimado quanto desconhecido por parte de Adriano de Gusmão (também presente) e falou-me com conhecimento de causa de umas velhas tábuas existentes na sacristia da igreja de Santa Clara do Porto, incentivando-me ao seu estudo. Recordo bem a sua presença de espírito, o seu humor, a sua vasta base de informação sobre o que no congresso se estava passando e sobre os benefícios que sentia estarem a abrir-se para a História da Arte portuguesa, carecida de estudos de base, inventários de existências, políticas de conservação, metodologias mais alargadas e visões artísticas melhor contextualizadas. Passei a seguir com atenção o seu trabalho e a descobrir o muito que escrevera, disperso por jornais e revistas da especialidade.

O Dr. Carlos da Silva Lopes era, sobretudo, um especialista no campo das chamadas (e em geral menorizadas) Artes Decorativas, com destaque para o mobiliário e as faianças, e também no campo da Gravura e da Heráldica.

Nesse encontro de há trinta e tantos anos, deixou-me, sobretudo, a impressão forte de que o estudo da História da Arte portuguesa se não deveria continuar a restringir à análise limitada e repetitiva das chamadas “obras-primas” e dos apregoados “grandes mestres”, como então genericamente se fazia, mas a alargar a sua esfera de estudos a novos campos de inusitado interesse.

O congresso de Flávio Gonçalves e de Smith trazia a todos a novidade das pesquisas renovadas sobre a talha retabular, a escultura sacra, a decoração brutesca, a arte do gravado, a arquitectura vernácula, a par do enfoque sobre os programas iconográficos das obras, e sentia-se que a História da Arte portuguesa atingia um patamar de viragem, bem necessária em termos de conhecimento das existências e bem mais atractiva em termos de novas metodologias e modos de ver… O congresso tivera a comunicação de José-Augusto França, por exemplo, com a sua dimensão sociológica da arte a afeiçoar a sua notável visão caracterizadora do fim do gosto barroco em Portugal, e essas eram, entre outras, motivações de debates que, entre acidez e serenidade, se cruzavam entre os presentes.

Recordo bem esse episódio que foi o encontro com um historiador de arte de créditos firmados em Braga no ano já longínquo de 1973 no momento em que é dada a estampa um volume de compilação dos textos dispersos de Carlos da Silva Lopes sobre Estudos de Historia da Pintura e da Gravura e em que a generosidade amiga do Prof. Doutor Gonçalo de Vasconcelos e Sousa me tornou o humilérrimo prefaciador desta colectânea. Devo dizer, antes de mais, que estes textos do eminente historiador de arte, museólogo e publicista não esgotam o trabalho por ele produzido, que se estendeu a outras esferas, desde a Arqueologia à Etnologia, à Literatura, à Heráldica, à Genealogia, e às questões da Conservação Patrimonial e da Museologia, com textos de fôlego saídos em revistas de arte, por exemplo, o Boletim do Museu Nacional de Arte Antiga, Bracara Augusta, Armas e Trofeus, Boletim Cultural da Povoa de Varzim, Revista de Arqueologia, Panorama, Apollo The International Magazine of Art and Antiques, e na revista Museu, do Círculo Dr. José de Figueiredo, onde deixou vultosa colaboração ao longo de uma dezena de anos. Também escreveu na Enciclopedia Verbo uma série de “entradas” importantes e colaborou no livro O Porto e os Descobrimentos. Nunca deixou, entretanto, de escrever o seu Bricabraque no número dominical de O Primeiro de Janeiro, ao longo de mais de trezentos números, bem como artigos nas páginas do Diario Popular, onde manteve por algum tempo a coluna Reportagens da Historia.

Dotado de grande sensibilidade para o estudo das obras de arte e para as problemáticas da sua cabal conservação, exposição e fruição pública, Carlos Manuel da Penha e Costa da Silva Lopes foi um investigador atento, divulgador esclarecido, orador fluente e, sobretudo, um técnico-museólogo de vocação.

Nasceu em Lisboa a 7 de Maio de 1904, licenciou-se em Direito pela Faculdade de Letras de Lisboa e desde cedo serviu o Estado na qualidade de Subdelegado do procurador da República e de chefe de secção da Direcção-Geral da Fazenda Pública, mas a par dessas actividades alimentou sempre a paixão pela Arte e pela Museologia, num interesse que prevaleceu com tónus vocacional, levando-o a iniciar um estágio no Museu Nacional de Arte Antiga, ainda ao tempo da direcção do Dr. José de Figueiredo, o que possibilitou que vivesse de perto – sob a lição do Dr. José de Figueiredo e, logo a seguir, com o Dr. João Couto, novo e dinâmico responsável do MNAA – a experiência vanguardista das novas soluções de montagem de peças e do incentivo à sua fruição junto de largas camadas de público, que tornavam o MNAA, como aliás sempre reconhecia o Dr. Carlos da Silva Lopes, um caso ímpar no contexto de sucesso nos anos 40 e 50, equiparável a alguns dos grandes museus além-fronteiras.

Nesse tirocínio que foi o seu estágio para conservador de museus privou com Maria José de Mendonça, Augusto Cardoso Pinto, Manuel Cayolla Zagallo e outros museólogos de prestígio.

Tendo sido nomeado conservador-adjunto dos Museus Nacionais, veio a assumir tarefas de responsabilidade na Museologia nacional, sendo a partir de 1938 conservador do Palácio Nacional de Mafra até que, em finais de 1945, se viria a radicar no Porto, trabalhando aí junto a outro vulto grado da museografia portuguesa, o Dr. Manuel de Figueiredo, ao tempo o director do Museu Nacional de Soares dos Reis, em cuja equipa se integrou na sua qualidade de conservador-adjunto, chefiando também, ao mesmo tempo, os serviços do contencioso da Empresa Hidro-Eléctrica do Cavado. Numa notícia sobre a personalidade de Silva Lopes, o seu amigo Dr. Flórido de Vasconcelos lembra nas páginas de O Tripeiro (1977) a sua grande probidade humana, sendo dotado de uma personalidade humilde, o que originou uma existência dispersada por outras actividades profissionais que se viu obrigado a assumir, não deixando por isso de dedicar o melhor do seu trabalho à causa das artes; era, como escreveu, “senhor de uma memória invulgar, leitor infatigável, guardando um prodigioso acervo de apontamentos e notas, mantendo relações de amizade com os mais distintos historiadores da arte portuguesa da época, conhecendo ‘de visu’ as melhores colecções do país, era ainda dotado de uma aguda e educada sensibilidade que lhe permitia emitir opiniões sempre acertadas sobre questões controversas de datação, autoria, autenticidade, etc., de obras de arte, com uma espontaneidade que nos enchia de admiração”…

Fino e arguto crítico de arte, Carlos da Silva Lopes procurava manter viva a chama de um contacto que, sem deixar de ser especializado nem redutor, conquistasse largas camadas do público para os temas da Arquitectura, da Pintura, das Artes Decorativas, dos Museus, da Iconografia, da Heráldica, da Genealogia, e outros, como se observa na sua longa e diversificada colaboração nas páginas do Jornal O Primeiro de Janeiro, reunidos na famosa rubrica a que deu o título de Bricabraque. A sua multifacetada acção de museólogo e crítico levara-o a conquistar amigos como Vasco Valente, Manuel de Figueiredo, Carlos Lobo de Oliveira, António Rodrigues Cavalheiro, Eugénio da Cunha e Freitas, Adriano de Gusmão, Flávio Gonçalves, Russell Cortez, Flórido de Vasconcelos e muitos outros investigadores. Museólogo muito experimentado, desde cedo, no estágio para conservador que frequentou no Museu Nacional de Arte Antiga, esse saber permitiu que se impusesse, ao chegar ao Porto, na equipa do Dr. Manuel de Figueiredo no Museu Nacional de Soares dos Reis.

Passa a ser membro da redacção da prestigiada revista Museu, publicação do Círculo Dr. José de Figueiredo, colaborando amiúde nos seus números, desde o ano de 1963, com artigos de História e Crítica de Arte. É certo que não nos deixou um livro – mas sabe-se quanta dificuldade existia, nesses anos difíceis, para o fazer, para mais uma vida como a de Carlos da Silva Lopes onde a modéstia de recursos e a humildade assumida eram troncos de identidade…

As páginas que aqui se reúnem, fruto da colaboração dispersa em O Primeiro de Janeiro, mostram onde o seu escopro analítico se estendeu aos mais variados temas. Encontramos artigos de grande qualidade e fino estilo que tratam de matéria desde o Livro das Fortalezas de Duarte d’Armas à iconografia do Natal na arte portuguesa, à figura de Albrecht Dürer nas suas relações com os portugueses da feitoria de Antuérpia, à iluminura de heráldica, às representações de instrumentos musicais na pintura quinhentista nacional, à edição da Civitates Orbis Terrarum de Braun, aos cobres de pintura flamenga existentes no Museu Nacional de Soares dos Reis, à figura, personalidade e obra do gravador seiscentista João Baptista, ao cariz devocional das pinturas barrocas de Josefa de Óbidos, às pinturas do italiano Giuseppe Troni e do francês Nicolas Delerive realizadas aquando da sua estada em Portugal no século XVIII, à gravura de Bartolozzi, à miniatura de António Joaquim Santa Bárbara, à pintura de costumes populares, aos “registos” de santos e à estampa não erudita com temário hagiológico, aos “ex-votos” populares, às colecções de ex-líbris estudadas pelo grande etnógrafo poveiro Rocha Peixoto, a um balanço crítico da origem da litografia em Portugal, até às recordações artísticas sugeridas pelos terramotos e a temas mais genéricos de conservação e de musealização, sob o traço comum do sentido da educacao pela arte.

Um dos mais interessantes estudos de Carlos da Silva Lopes reunidos nesta colectânea de estudos será o que dedicou, em 1968, aos dois célebres quadros que representam a Aclamacao de D. Joao IV, ao tempo no Palácio da Independência e hoje no Palácio Ducal de Vila Viçosa, com uma profunda descrição dos seus vários sentidos narrativos, à luz da parenetização propagandística das obras de arte portuguesa no século XVII. E, é curioso acentuá-lo, muitos dos problemas colocados e analisados têm recorte actual, abrem ‘estados de questão’ que persistem incólumes, meio século passado… É pena que outros estudos não apareçam, como o que dedicou ao pintor genovês Giovan Battista Ponte, um pintor que no fim do século XVII veio a Lisboa executar o tecto da igreja de Nossa Senhora do Loreto (obra desaparecida) e que saiu em 1935 nas páginas da Revista de Arqueologia e que possibilitou que, muitos anos mais tarde, outros historiadores de arte seguissem a senda do esquecido artista e lhe definissem outras facetas do percurso, incluindo obras remanescentes… Mas compreendem-se os critérios: se o presente livro reunisse toda a colaboração dispersa do Dr. Carlos da Silva Lopes, alargando-o a outras temáticas que não a Gravura e a Pintura, aduzindo textos de catálogos de exposições, pareceres e relatórios emitidos na qualidade de conservador de Museu, textos sobre Heráldica, Genealogia, ou Arqueologia, etc., etc., não chegaria um só volume para albergar essa vasta produção.

A leitura deste livro abre os contornos da actividade de um ‘homem bom’ do século XX que serviu a História da Arte e a Museologia portuguesas consciente de que a sua renovação era um imperativo de cidadania e que, mais cedo ou tarde, seria uma experiência aplicada no terreno. O entusiasmo com que elogiava a novidade da museologia de Figueiredo ensaiada no MNAA e seguida depois por Couto nos anos 50 e 60 era também um entusiasmo de especialista nas difíceis tramas de expor, conservar e abrir à fruição, ou seja, de tornar os percursos museológicos verdadeiras lições de saber e marcantes exposições artísticas com sentido.

Homem simples e modesto, traços de uma personalidade sapiente que se preocupava de modo intenso com a salvaguarda do património nacional e com a formação artística das gerações mais novas, o Dr. Carlos da Silva Lopes foi um “homem bom, generoso e excepcionalmente culto”, como escreveu, em síntese sobre a sua existência, o Dr. Flórido de Vasconcelos. Em boa hora esta colectânea de dispersos vem colmatar uma lacuna que era também exigência dos meios histórico-artísticos a respeito de uma personalidade algo esquecida cujo legado científico constitui matéria de ensinamento imperecível.

Lisboa, Julho de 2006

5 comentários:

  1. Para os mais novos da Família Cortez, Carlos da Silva Lopes era genro do Avô Alfredo Cortez, casado com Maria de Lourdes Cortez Machado e pai de 10 filhos, entre os quais me incluo.
    Deixou muito boas recordações, mas também muitas saudades.

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  2. o Discurso com que abriu a a presentação do livro foi Lindo!!!
    A minha fila toda onde estava sentada ficou de lagrimas nos olhos.
    bjs
    Inês (filha do Manel)

    PS- Bonito tb foi ver os seus Amigos todos presentes!

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  3. Que lindo prefácio!
    Que tio maravilhoso!
    Parabéns a toda a família, em especial à mulher e aos filhos.

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  4. Não foi bem um discurso o que eu fiz...
    Foi um deixar sair os sentimentos...
    Bjs

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  5. Que pena, ainda não se pode estar presente pela Internet.
    Xana

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